Trauma e traumatização: entre corpo, memória e inconsciente
- annacarolinacruzps
- 2 de abr.
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O trauma não é apenas um evento, mas um processo. Sua marca não se define pelo que aconteceu em si, mas pelo que o sujeito pôde ou não elaborar. Na psicanálise, o trauma é concebido como um excesso, algo que irrompe na experiência psíquica sem encontrar significação imediata, retornando de formas deslocadas: sintomas, lapsos, repetições. Mas há também um corpo que sente, que registra, que responde ao trauma para além da linguagem. É nesse ponto que a neurociência e a experiência somática de Peter Levine contribuem para ampliar nossa compreensão da traumatização.
O corpo como arquivo do trauma
Enquanto a psicanálise nos ensina que o trauma é, em grande parte, uma questão de inscrição psíquica, a neurociência evidencia que sua marca também se dá biologicamente. O sistema nervoso autônomo, responsável por nossas respostas automáticas de luta, fuga ou congelamento, pode permanecer hiperativado quando um evento traumático não é devidamente processado. Essa hiperativação pode resultar em estados de alerta crônico, dissociação ou uma sensação persistente de ameaça, mesmo na ausência de perigo real.
Peter Levine, ao estudar os efeitos do trauma no corpo, propõe que a elaboração não passa apenas pela narração da experiência, mas pelo restabelecimento da capacidade de sentir e processar sensações físicas sem ser dominado por elas. O corpo, muitas vezes excluído do discurso terapêutico tradicional, revela-se fundamental na reintegração do sujeito após a experiência traumática.
Trauma, repetição e elaboração
A psicanálise nos mostra que o sujeito traumatizado não apenas se lembra do trauma, mas o revive—não como uma recordação clara, mas como algo que insiste, que retorna de forma sintomática. É na repetição que se percebe a tentativa inconsciente de dar um sentido ao que, inicialmente, escapou à simbolização. A experiência somática, ao trabalhar com o corpo e suas respostas automáticas, pode oferecer um suporte para que esse processo ocorra sem a necessidade de reviver a cena traumática de maneira destrutiva.
O lugar da clínica
A articulação entre psicanálise e experiência somática não implica reduzir o trauma a uma dimensão meramente biológica ou discursiva. Pelo contrário, trata-se de reconhecer que o trauma é vivido no corpo e no psiquismo, e que sua elaboração demanda um trabalho que vá além da verbalização. Criar um espaço em que o sujeito possa se apropriar daquilo que o atravessa—sem pressa, sem imposições, mas com um olhar atento ao que se manifesta tanto na fala quanto no corpo—é o desafio clínico.
O trauma não desaparece, mas pode ser reinscrito. E talvez seja nesse movimento de elaboração que algo novo possa surgir.